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Se a justificativa que você encontra para condenar o Bolsa FamÃlia é a de uma platitude do tipo "está errado distribuir o peixe, o certo é ensinar a pescar", preste atenção. O Foreign, Commonwealth & Development Office e o Medical Research Council, órgãos do governo britânico, e a instituição filantrópica Wellcome Trust, organizações da maior respeitabilidade, patrocinaram um estudo que acaba de ser publicado na prestigiosa revista médica The Lancet.
Nele, foi avaliado o impacto do Bolsa FamÃlia na saúde dos brasileiros nos 20 anos que se passaram desde a sua criação, em 2004.
Atualmente, o programa atinge mais de 20 milhões de famÃlias e cerca de 55 milhões de pessoas.
Estudos anteriores tinham demonstrado que o programa reduzira em 18% a mortalidade total das mulheres, além de diminuir a mortalidade infantil, a materna e os óbitos por causas especÃficas como HIV, Aids e tuberculose, especificamente entre as pessoas mais vulneráveis.
Não havia, porém, avaliação de sua relação com o número de internações hospitalares e com a mortalidade geral por faixa etária. A publicação da Lancet mostra, pela primeira vez, um estudo com abrangência analÃtica adequada para avaliar o impacto do Bolsa FamÃlia na mortalidade e nas hospitalizações em três grupos etários: abaixo de cinco anos, de cinco a 69 anos e com 70 anos ou mais.
Os principais achados foram:
1) Nos 20 anos analisados, a mortalidade geral dos beneficiários caiu 18%, queda que ocorreu em todas as faixas etárias.
2) Nesse perÃodo, o programa evitou 8,2 milhões de internações hospitalares e 713 mil mortes, em números arredondados.
3) A mortalidade infantil diminuiu 33%. Ou seja, de cada três mortes de crianças com menos de cinco anos que ocorreriam sem o Bolsa FamÃlia, uma foi evitada.
4) A hospitalização de mulheres e homens com 70 anos ou mais caiu pela metade.
O Bolsa FamÃlia é considerado pelas organizações internacionais um programa de transferência de renda condicional, uma vez que impõe a observância de contrapartidas para ter acesso a ele: frequência das crianças na escola, manter em dia a caderneta de vacinações e as consultas do pré-natal.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) caracterizou com três "C" os principais desafios socioeconômicos impostos a diversos paÃses nos últimos anos: Covid, clima e conflitos. A conjunção desses fatores adversos provocou aumento da pobreza e piora dos indicadores educacionais na maior parte do mundo.
O aumento da dÃvida pública consequente a esses agravos levou à adoção de medidas de austeridade fiscal, com cortes de orçamento que reduziram investimentos em medidas de proteção social e de acesso aos cuidados com a saúde pelo mundo inteiro.
Em 2024, o investimento no Bolsa FamÃlia foi de R$ 218,5 bilhões. Cada beneficiário custa, em média, aos cofres do governo federal, aproximadamente R$ 684.
Convenhamos que não é um custo proibitivo: ao todo, representa apenas 0,4% do PIB brasileiro. Por outro lado, cada R$ 1 investido faz girar R$ 2,40 no consumo dessas famÃlias.
É difÃcil calcular quanto o SUS economizou com as internações evitadas no decorrer desses 20 anos. Além da inflação no perÃodo, os valores médios pagos por internação são muito variáveis. As diárias hospitalares vão de R$ 300 a R$ 800, no caso dos problemas clÃnicos mais simples, e de R$ 5.000 a mais de R$ 15 mil nos casos de alta complexidade.
De qualquer forma, o dinheiro economizado com internações e os ganhos de produtividade dos que não precisaram ir para o hospital e dos que não perderam a vida têm de ser descontados do investimento anual do programa.
Existem os que se queixam de que o programa gera acomodação dos beneficiários, que deixam de trabalhar para viver das benesses do governo. É provável que seja verdade, mas vamos atacar essa questão somente quando soubermos quantificá-los.
Quantos são? Onde vivem? Quais são as caracterÃsticas socioeconômicas desse grupo especÃfico?
Enquanto não formos capazes de obter dados confiáveis, ficaremos discutindo opiniões sem base em evidências, conversas de redes sociais e palpites de botequim que não ajudam em nada.
Vivemos num paÃs com recursos naturais invejáveis para o resto do mundo, grande número de profissionais bem treinados, alguns dos quais com pós-graduação nas melhores universidades do Brasil e do mundo, mas ao mesmo tempo com uma das mais perversas distribuições de renda do mundo.
Um paÃs em que o 1% mais rico da população ganha 39,2 vezes o que ganham os 40% mais pobres, segundo o IBGE, nunca estará entre os mais desenvolvidos nem terá paz nas ruas.
Dráuzio Varela – Folha de São Paulo, 18-jun-25
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