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 O Ministério da Saúde deve lançar ainda neste ano uma nova iniciativa em que a enfermagem poderá solicitar exames, realizar consultas e prescrever alguns remédios no SUS. As atividades são respaldadas por lei federal, mas enfrentam resistência dos conselhos médicos.Â
A proposta envolve a elaboração de novos protocolos de enfermagem e foi inspirada em experiências que já vigoram em outros paÃses, como Reino Unido e Canadá, e em alguns municÃpios brasileiros.
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Uma delas, em Jaraguá do Sul (SC), está entre as vencedoras de um prêmio da Opas (Organização Mundial de Saúde) e do Ministério da Saúde, que elegeu as melhores experiências para ampliar o acesso à atenção primária no SUS.
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O municÃpio adotou um protocolo de enfermagem criado na capital catarinense, Florianópolis, e, em seis meses, conseguiu zerar a fila de espera para a primeira consulta na atenção primária.
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Segundo Erno Harzheim, secretário de Atenção Primária à Saúde do ministério, estão sendo elaborados protocolos para as principais condições de saúde em que enfermeiros apoiariam o médico.
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O primeiro será de rastreamento de câncer de colo do útero e de mama e é baseado em protocolos já vigentes em Florianópolis e Porto Alegre. A enfermagem faz a consulta, o exame fÃsico, a coleta do Papanicolaou e orienta a mulher sobre o resultado. Se houver lesão sugestiva de câncer, encaminha-a ao médico.
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No caso de câncer de mama, se a mamografia estiver normal, a enfermeira informa e orienta a mulher sobre a rotina de cuidados. Se existir alguma alteração suspeita, passa o caso para o médico.
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Segundo Harzheim, os protocolos serão discutidos um a um com os conselhos federais de medicina e de enfermagem (CFM e Cofen). “Todos estarão ajustados à s normas legais para que o enfermeiro possa trabalhar com alguns aspectos clÃnicos.â€
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Em nota, o CFM diz desconhecer a proposta do ministério e que foi chamado para se manifestar sobre ela. Reitera que, apesar de reconhecer a existência de protocolos especÃficos para ações no campo da saúde pública, a Lei do Ato Médico estabelece que o diagnóstico e a prescrição de tratamentos são atribuições exclusivas do médico.
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O médico Renato Tasca, coordenador de sistemas e serviços da Opas no Brasil, afirma que as doenças crônicas, como diabetes e hipertensão, já respondem por mais de 70% das causas de adoecimento do brasileiro, pondo os serviços de saúde “de joelhosâ€.Â
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Por isso, diz, é essencial repensar o modelo de atenção à saúde. “Baseados em evidências cientÃficas, os protocolos regulam e orientam o trabalho da enfermagem na atenção primária, permitindo ampliar o acesso, reduzir filas e agregar qualidade à atenção.â€
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Para o médico Drauzio Varella, colunista da Folha e um dos jurados do prêmio da Opas, os protocolos rompem a barreira do corporativismo médico ao atribuir à enfermagem papel relevante na atenção primária à saúde.
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A capital pioneira na implantação no Brasil foi Florianópolis, em 2013, em parceria como Coren (Conselho Regional de Enfermagem de Santa Catarina). Desde então, houve um aumento de 38% do acesso aos serviços de saúde.
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O enfermeiro já é responsável por até 90% do atendimento da demanda espontânea (consultas sem agendamento) e realiza 98% dos testes rápidos (para detecção de HIV e hepatite, por exemplo).
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“Como grande parte da demanda espontânea já está nas mãos do enfermeiro, se ele consegue fazer a testagem, a gente tem ampliação e resolutividade do acessoâ€, diz Elizimara Siqueira, responsável pela enfermagem da rede municipal de Florianópolis e conselheira do Coren.
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O tratamento inicial de sÃfilis na capital quase quadruplicou. Antes da adoção do protocolos de enfermagem, só 16% de casos eram tratados. Neste ano, foram 60% .
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Enfermeiros fazem o teste rápido para detectar a doença e, se positivo, imediatamente medicam o paciente com penicilina. “Em 2018, todas as gestantes identificadas com sÃfilis foram acompanhadas e tratadas até o fimâ€, diz ela.
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Os protocolos seguem recomendações do Ministério da Saúde e do Cofen e se baseiam em diretrizes de instituições renomadas como BMJ (British Medical Journal) e Cochrane (rede de cientistas independentes).
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Em 2017, o CFM ingressou com ação judicial para proibir essas atividades da enfermagem sob alegação de que elas invadiriam as atribuições dos médicos. O caso foi arquivado.
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Quase dois terços dos enfermeiros da capital catarinense têm formação adicional em medicina de famÃlia.
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Quatro dos seis protocolos em vigor em Florianópolis, entre eles manejo de doenças crônicas, infecções sexualmente transmissÃveis e saúde da mulher, já são adotados por 48 municÃpios catarinenses. Jaraguá do Sul, por exemplo, tinha há um ano fila de espera de 15,5 mil consultas. Com a adoção do protocolo, a fila para a primeira consulta foi zerada em maio.
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Hoje, em 70% das consultas o usuário chega e é atendido pela enfermagem, sem esperar vaga em outro dia.
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Segundo a enfermeira Silvia Regina Bonatto, gerente de atenção básica em Jaraguá, no inÃcio a proposta enfrentou desafios como a desconfiança da população de ser atendida por enfermeiros, além da resistência dos médicos.
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Um ano depois, isso mudou. “Estamos trabalhando ombro a ombro com os médicos. Muitos que eram resistentes vieram nos cumprimentar.â€
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Mas há desafios a superar. A prescrição da enfermagem, por ora, não é aceita no programa federal Farmácia Popular, que oferta remédios essenciais gratuitamente ou a preço menor. Harzheim diz que a questão está em estudo.
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EXPERIÊNCIAS NO RIO E NO PARà TAMBÉM SÃO PREMIADAS
Além da experiência de Jaraguá do Sul, outras duas foram eleitas as mais bem-sucedidas na área da atenção primária: uma na comunidade do Salgueiro (Rio de Janeiro) e outra em Abaetetuba (PA).
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No Salgueiro, uma equipe de saúde da famÃlia fez um trabalho com crianças encaminhadas a serviços de saúde por alterações de comportamento no ambiente escolar, a maioria com diagnóstico de déficit de atenção e hiperatividade.
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A proposta foi cuidar não só das crianças, mas também dos contextos familiar e social em que estavam inseridas. O trabalho envolveu famÃlias e educadores, conscientizando, entre outras coisas, para a cultura da não violência.
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Em Abaetetuba, municÃpio com altos Ãndices de mortalidade de mulheres em idade fértil, de gravidez na adolescência e de casos de sÃfilis, HIV e hepatites virais, o projeto envolveu ações de saúde com adolescentes, adultos e idosos, abordando sexualidade, valorização e respeito.
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Houve aumento no número de atendimentos de pré-natal, atendimentos de saúde sexual e reprodutiva, testes rápidos de hepatite, sÃfilis e HIV, entre outros.
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Fonte: Folha de Sp