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Técnicos do Ministério da Economia trabalham com a possibilidade de prorrogar o estado de calamidade e o Orçamento de guerra caso ocorra uma segunda onda da Covid-19. Sem as medidas, não haverá espaço para ampliar gastos.Â
O ministro Paulo Guedes (Economia) defende a volta do Orçamento de 2021 à normalidade. No entanto, membros da área técnica da pasta, reservadamente, já reconhecem que o governo terá de afrouxar regras fiscais se a pandemia se agravar.
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Entre especialistas, a percepção é que serão necessários gastos extraordinários mesmo que os casos da doença caiam. Para eles, haverá demanda por serviços de saúde e necessidade de comprar e distribuir vacinas.
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A Folha ouviu membros da área técnica do Ministério da Economia sobre os caminhos para o Orçamento em 2021. Os integrantes são responsáveis por monitorar as contas do governo e elaborar o plano de despesas da União.
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O estado de calamidade pública acaba no dia 31 de dezembro. O Orçamento de guerra suspende normas fiscais. Sem recorrer a essas medidas, eles dizem que não será possÃvel implementar ações sem descumprir o teto de gastos, a regra de ouro e a meta fiscal.
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A regra do teto impede o crescimento das despesas acima da inflação do ano anterior. A regra de ouro barra a alta do endividamento. A meta fiscal define o quanto o governo terá de rombo ou superávit nas contas públicas.
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Medidas como o auxÃlio emergencial, por exemplo, teriam de acabar com o fim do estado de calamidade. A última parcela do benefÃcio será a de dezembro, no valor de R$ 300. No inÃcio da pandemia, eram R$ 600.
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O mesmo ocorre com o programa de suspensão de contrato de trabalho e redução de jornada e salário, que só poderia continuar com uma prorrogação ou um novo decreto de calamidade pública.
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A avaliação dos técnicos diverge de declarações do ministro e membros do gabinete.
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Em aparições públicas, e mesmo em conversas internas na pasta, Guedes tem afirmado que o governo estará pronto para agir em caso de segunda onda da doença. Porém, ele diz que esse não é o cenário colocado na mesa no momento.
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O ministro afirma que o governo não espera ser necessário acionar medidas para uma forte ampliação de gastos, como foi feito neste ano.
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Guedes e auxiliares próximos buscam tratar a segunda onda como improvável. Para eles, a doença vem recuando e a economia está em recuperação, o que dispensaria inclusive a prorrogação do auxÃlio emergencial.
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As autoridades trabalham ainda com a hipótese de não haver perspectiva de um fechamento tão forte da economia como a que ocorreu no meio deste ano.
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Nos últimos dias, no entanto, o ministro passou a reconhecer internamente que a segunda onda pode se tornar uma realidade se os números da doença continuarem subindo. Dados do Ministério da Saúde mostram que o paÃs está em trajetória de alta de casos e mortes.
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Membros do gabinete do ministro afirmam que a estratégia de ação do governo em 2021 vai depender da intensidade da doença. Eles esperam que não seja necessário adotar medidas drásticas, como as deste ano.
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Entre as justificativas para evitar novos gastos está a disparada da dÃvida pública, que pode chegar a 96% do PIB (Produto Interno Bruto).
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Guedes e secretários querem a retomada de medidas de ajuste fiscal e a redução de gastos obrigatórios, com a reforma administrativa, que muda a estrutura do serviço público, e a PEC Emergencial, que aciona gatilhos para cortar gastos.
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Para o enfrentamento da pandemia em 2020, o governo abriu os cofres e liberou quase R$ 600 bilhões em medidas emergenciais.
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Para 2021, porém, sem calamidade e sem Orçamento de guerra, as travas fiscais serão retomadas. Isso significa que o governo não terá liberdade para gastar além do previsto no Orçamento.
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A peça orçamentária de 2021 ainda está em discussão no Congresso, com tramitação atrasada. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), afirmou em diferentes ocasiões que o decreto de calamidade não será prorrogado.
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Mas, restando pouco mais de três semanas para o encerramento do ano, técnicos do ministério dizem acreditar que dificilmente será possÃvel ampliar gastos em 2021 sem manter as medidas.
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A visão interna é que diferentes gastos terão de ser feitos por meio de créditos extraordinários, que podem ser usados para despesas urgentes e imprevisÃveis, como em calamidade. Entraria nessa rubrica, por exemplo, a vacinação.
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Um dos elaboradores do Orçamento explica que a abertura de créditos extraordinários tem entraves. Embora esses recursos não sejam contabilizados na regra do teto, que limita o crescimento de gastos do governo à variação da inflação, eles afetam a meta fiscal e a regra de ouro.
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Abrir esses créditos em 2021 sem afrouxar regras fiscais, portanto, exigiria o corte de gastos em outras áreas do governo.
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A visão é compartilhada por um componente do Tesouro Nacional. Para ele, é consenso na área técnica que não será possÃvel usar créditos extraordinários livremente.
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"É muito difÃcil a gente não ter nenhum impacto nas contas em 2021. Na melhor das hipóteses, vamos gastar com vacinação e despesas do SUS. Dificilmente vamos ter uma situação controlada", diz Daniel Couri, diretor da IFI (Instituição Fiscal Independente, ligada ao Senado).
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"Faltam três semanas para 2021 e vamos continuar com muitos casos e pessoas hospitalizadas", afirma Couri. Ele também vê uma chance elevada de ser necessária nova prorrogação do auxÃlio emergencial.
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Para o economista, o caminho mais fácil para viabilizar os gastos extras em 2021 é a prorrogação das regras de calamidade pública e do Orçamento de guerra. Ele diz ser possÃvel contornar regras fiscais sem o uso desses mecanismos, mas seria necessário combinar diferentes estratégias.
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Para Couri, inicialmente, o governo teria de apresentar uma meta fiscal "confortável". E, se necessário, alterá-la no próximo ano.
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No caso da regra de ouro, seria preciso pedir autorização ao Congresso para ultrapassar o limite da norma. Para não afetar o teto de gastos, as despesas adicionais teriam de ser feitas por meio dos créditos extraordinários.
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Couri pondera que não há consenso sobre a possibilidade de uso desses créditos em 2021. Isso porque a pandemia pode não ser mais considerada inesperada, já que está em curso há meses.
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De qualquer maneira, embora não atinja o teto, o uso de créditos extraordinários impacta a meta e a regra de ouro. Tudo isso precisaria entrar na conta do governo.
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Questionado sobre qual o plano do governo para os gastos adicionais em 2021, o Ministério da Economia não havia respondido até a conclusão deste texto.
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REGRAS FISCAIS
Teto de gastos
Limita por 20 anos o crescimento dos gastos do governo federal à variação da inflação
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Meta fiscal
É o esforço que o governo promete fazer para evitar o crescimento da dÃvida pública. O valor estabelecido corresponde à diferença entre as receitas e despesas previstas pelo governo para o ano, exceto o gasto com juros
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Regra de ouro
Impede o governo de se endividar para pagar despesas correntes, como salários, Previdência e benefÃcios assistenciais
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AS SOLUÇÕES EM 2020
Calamidade pública
Decreto liberou o governo para gastar mais e descumprir a meta fiscal do ano. Com isso, não foi necessário cortar gastos de ministérios para compensar as despesas com a pandemia
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PEC de guerra
Criou uma espécie de Orçamento paralelo, voltado ao combate da pandemia. Dispensou o cumprimento da regra de ouro e flexibilizou regras para contratações, obras e serviços
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Créditos extraordinários
São recursos adicionais destinados a despesas consideradas urgentes ou imprevisÃveis. Não afetam o teto de gastos, mas impactam a regra de ouro e a meta (que foram suspensas em 2020)
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PARA 2021
O que Guedes deseja
O ministro argumenta que a doença está cedendo e a economia, se recuperando. Por isso, defende a retomada da agenda de reformas estruturantes, ajuste fiscal e medidas de estÃmulo ao emprego. Afirma, porém, que o governo agirá em caso de segunda onda da pandemia, o que considera improvável
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O que técnicos do Ministério da Economia afirmam
Não haverá espaço para gastos extraordinários. A única brecha foi aberta pelo TCU, que autorizou o governo a usar recursos do Orçamento deste ano em 2021, na forma de restos a pagar. Em caso de necessidade de despesas adicionais, o caminho será prorrogar a calamidade pública e o Orçamento de guerra
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Fonte: Folha de SP