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O Ministério da Saúde forneceu máscaras impróprias para uso médico a profissionais de saúde que estão na linha de frente do combate à Covid-19.Â
Parte dessas máscaras foi entregue à pasta por uma empresa cujo representante no Brasil é um executivo que atua no mercado de relógios de luxo suÃços –é ele quem assina o contrato com o governo federal.
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Um documento do gabinete da presidência da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), elaborado em 13 de janeiro e obtido pela Folha, aponta que as máscaras analisadas –chinesas, do tipo KN95– não eram indicadas para uso hospitalar. Mesmo assim, o ministério distribuiu o material e se recusou a substitui-lo diante da recusa de estados em usar os equipamentos.
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O mesmo documento do gabinete da presidência da Anvisa afirma que o órgão recebeu diversas reclamações sobre a impropriedade das máscaras, avisou o Ministério da Saúde sobre a necessidade de atender às especificações dos fabricantes e fez um alerta sobre “riscos adicionais†a que estão sujeitos profissionais e pacientes.
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A posição da Anvisa foi enviada ao MPF (Ministério Público Federal) em BrasÃlia, que instaurou, em 3 de fevereiro, um inquérito civil para investigar a história.
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Foram duas as situações envolvendo essas máscaras. Uma parte delas teve o uso interditado pela Anvisa a partir de junho de 2020 depois que a autoridade sanitária dos Estados Unidos (FDA, na sigla em inglês) suspendeu autorizações emergenciais diante da falta de eficiência mÃnima na filtragem de partÃculas.
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Outra parte foi escanteada pelos estados em razão da advertência “non-medical†presente nas embalagens das máscaras enviadas para as secretarias de Saúde locais. Equipamentos ficaram parados em estoques, sem uso.
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A pasta distribuiu ambas pelo menos entre julho e dezembro de 2020. E não só se recusou a recolher os produtos e a substituÃ-los, segundo esses documentos, como enviou mais máscaras “non-medical†para uso hospitalar.
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O Ministério da Saúde defendeu as máscaras em documentos elaborados em agosto e novembro de 2020 e em janeiro de 2021. A pasta sustentou que a empresa contratada provou por meio de testes a eficiência de filtragem de cinco marcas, com “eficácia alta†equivalente a máscaras N95 e PFF2. O material, segundo o ministério, seria útil em casos não cirúrgicos.
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O MPF, então, pediu uma posição da Anvisa a respeito. O documento ficou pronto em 13 de janeiro e foi enviado aos procuradores da República pela chefia de gabinete do diretor-presidente da agência, Antonio Barra Torres.
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As cinco marcas analisadas atendem a requisitos mÃnimos, mas os documentos fornecidos à Anvisa não permitiram saber se as marcas indicadas são exatamente as que foram fornecidas aos estados, segundo o parecer da agência.
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A Folha constatou nos documentos do inquérito do MPF que a marca interditada pela Anvisa não aparece entre as que foram submetidas a testes pela empresa contratada pelo Ministério da Saúde. A reportagem também constatou que máscaras do tipo foram de fato enviadas a estados.
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Em nota, a Anvisa confirmou que a marca “encontra-se com medida sanitária válida de suspensão de comercialização, distribuição e importação para uso em serviços de saúdeâ€. “Os respiradores falharam em demonstrar a eficiência de filtração mÃnima requerida.â€
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Já as máscaras com a advertência “non-medical†na embalagem não podem ser usadas por profissionais de saúde, segundo o documento da Anvisa de 13 de janeiro.
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“Cabe ao fabricante do produto definir a sua indicação e restrições de uso; portanto, deve-se seguir a informação constante na rotulagem em relação à restrição do uso da máscaraâ€, cita o gabinete da presidência do órgão. “Os produtos com a informação de advertência ‘non-medical’ não são enquadrados como produto médico, não sendo indicados para uso por profissionais de saúde.â€
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Um contrato para o fornecimento de máscaras KN95 ao governo foi assinado em 8 de abril, num contexto de dificuldade de obtenção do material no mercado externo, com a pandemia ganhando contornos de gravidade no mundo inteiro. Uma legislação especial permitiu a dispensa de licitação para a compra.
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A contratada foi uma empresa de Hong Kong, a Global Base Development HK Limited, representada no Brasil pela 356 Distribuidora, Importadora e Exportadora. O dono da 356, Freddy Rabbat, assinou o contrato, que previu 40 milhões de máscaras. Houve ainda mais 200 milhões de máscaras cirúrgicas no mesmo contrato.
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Cada máscara KN95 saiu por US$ 1,65 (R$ 9,20, pela cotação do dólar desta quarta, 17). O total foi de US$ 66 milhões (R$ 368,3 milhões).
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Rabbat atua em uma empresa de relógios de luxo no Brasil. Ele é presidente da Abrael (Associação Brasileira das Empresas de Luxo).
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A 356 Distribuidora tem um capital social de R$ 800 mil, segundo os registros da Receita Federal. A Global Base, representada pela 356, já recebeu R$ 734 milhões do governo federal, principalmente pela venda de máscaras na pandemia. Os dados são do Portal da Transparência.
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No documento ao MPF, a Anvisa afirmou que sua gerência de tecnovigilância já havia recebido diversas reclamações e informado à secretaria-executiva do Ministério da Saúde que “os serviços de saúde estavam notificando o recebimento de produtos sem indicação para uso por profissionais de saúdeâ€.
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“[A gerência] entende ser prudente e necessário reforçar junto a esse órgão a necessidade de observar as indicações expressas pelo fabricante do produto, de modo que profissionais e pacientes não sejam expostos a riscos adicionais em função da inadequação do produto utilizado pelo profissional de saúdeâ€, cita nota técnica enviada ao MPF.
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À Folha a Anvisa disse, em nota, que o material interditado pode ser usado para substituir máscaras de tecido artesanal ou de uso não profissional. Sobre as máscaras com advertência “non-medicalâ€, a agência afirmou que “não foram encontradas medidas sanitárias vigentesâ€.
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Até a publicação da reportagem, o Ministério da Saúde não respondeu aos questionamentos da reportagem, enviados à assessoria de imprensa da pasta na noite de terça-feira (16).
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A Folha enviou questionamentos a Freddy Rabbat nos emails informados da Abrael e da 356 Distribuidora. Uma assessoria de imprensa disse que responderia, mas não o fez até a publicação da reportagem.
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Fonte: Folha de SP