
No Dia Nacional da ConsciĂȘncia Negra, lembrado neste domingo (20), especialistas alertam para a necessidade de se repensar o uso de termos e expressĂ”es que reforçam o racismo. HĂĄ casos em que essas palavras sĂŁo reproduzidas sem que as pessoas tenham o conhecimento histĂłrico da origem delas.

Para conscientizar sobre o tema, a Defensoria PĂșblica da Bahia lançou o DicionĂĄrio de ExpressĂ”es (Anti) Racistas, no ano passado.
âNosso idioma foi construĂdo sob forte influĂȘncia do perĂodo de escravização e muitas destas expressĂ”es seguem sendo usadas atĂ© hoje, ainda que de forma inconsciente ou nĂŁo intencional. Precisamos repensar o uso de palavras e expressĂ”es que sĂŁo frutos de uma construção racistaâ, destaca a publicação.
A cartilha cita expressĂ”es como âa coisa tĂĄ pretaâ, em que a cor preta ou negra Ă© usada em uma conotação negativa, e propĂ”e a substituição para âa situação estĂĄ difĂcilâ.
Outro exemplo de expressĂŁo considerada racista Ă© âcabelo ruimâ para designar cabelo crespo ou cacheado. A publicação tambĂ©m aponta as expressĂ”es âmercado negro, magia negra, humor negro e ovelha negraâ â em que a palavra ânegroâ representa algo pejorativo, prejudicial, ilegal. Como alternativa, propĂ”e-se o uso de mercado clandestino, lista proibida e humor ĂĄcido.Â
âO racismo se revela de diversas formas em nossa sociedade. Estas microagressĂ”es, alĂ©m de reproduzirem um discurso racista, ao identificarem a negritude como marcador de inferioridade social, afetam o bem-estar de pessoas negrasâ, diz a cartilha.
HĂĄ outras palavras menos Ăłbvias, como âboçalâ, descrita na cartilha como âreferĂȘncia aos escravizados que nĂŁo sabiam falar a lĂngua portuguesaâ. Essa desqualificação tambĂ©m Ă© uma das formas de racismo que, segundo o linguista e professor da Universidade Federal do Sul da Bahia Gabriel Nascimento, persiste nos dias atuais.
âAs palavras sĂŁo resultado de uma formação histĂłrica racista. O racismo linguĂstico nĂŁo se resume Ă s palavrasâ, enfatiza.
Nascimento lembra que os negros representam mais de 50% da população brasileira. âEssa população modificou essa lĂngua. Ela Ă© parte dessa lĂngua porque essa lĂngua Ă© dela. No entanto, quando a gente vai falar de como o Estado e as pessoas tratam as pessoas negras, normalmente a elas Ă© imposta uma falta de autoestima linguĂstica, como pessoas que nĂŁo sĂŁo portadoras da capacidade de falar essa lĂngua de maneira orgĂąnica e politicamente, de se comunicarâ, destaca.
O uso das palavras tambĂ©m Ă© uma forma de disputa, segundo Nascimento. Ele destaca a palavra ânegroâ aplicada a pessoas, que nĂŁo tinha equivalente na Ăfrica antes da invasĂŁo europeia. âComo vocĂȘ explica um paĂs onde ânegroâ seja uma palavra usada ao mesmo tempo para politizar uma população mestiça e tambĂ©m para racismo? Ao mesmo tempo que o homem preto positiva a sua narrativa  â âeu sou um homem negroâ â vocĂȘ tem a presença desse homem negro sendo chamado por uma mulher branca de ânegro fedidoââ, diz, usando como exemplo o caso de racismo contra o humorista Eddy JĂșnior, ofendido por uma vizinha no condomĂnio onde mora na zona oeste da capital paulista em outubro de 2022.
InfluĂȘncia africana
Uma das maiores demonstraçÔes do racismo na lĂngua portuguesa no Brasil Ă© a falta de estudo da influĂȘncia das lĂnguas africanas na formação do idioma, segundo Gabriel Nascimento â  que Ă© autor do livro Racismo LinguĂstico.
âO fato de a gente levar 14 anos na educação formal tentando aprender a diferença entre adjunto adnominal e complemento nominal mostra o quĂŁo colonial, o quanto de racismo linguĂstico a gente tem no nosso portuguĂȘs. Porque a gente nĂŁo identifica a importĂąncia das lĂnguas bantus [grupo Ă©tnico africano], a sua influĂȘncia nos falares do Brasilâ, afirma o pesquisador.
Esses idiomas influenciaram nĂŁo sĂł com palavras que sĂŁo usadas no cotidiano brasileiro, como tambĂ©m, de acordo com Nascimento, atĂ© na sintaxe predominante no paĂs. Entre as palavras, o pesquisador aponta como exemplos samba, bunda, cachimbo, acalanto, dengo, quiabo, bengala.
HĂĄ ainda, segundo ele, usos comuns que na chamada norma culta acabam sendo considerados incorretos. âA gente nĂŁo sabe, por exemplo, que nas lĂnguas bantus, que sĂŁo lĂnguas extremamente prefixais, toda a informação de plural e singular entra de maneira prefixal. Nessas lĂnguas vocĂȘ normalmente coloca as informaçÔes de singular e plural no primeiro traço da palavraâ, explica.
âQuando vocĂȘ faz a concordĂąncia em âas meninaâ, vocĂȘ apenas coloca o plural no primeiro item. Essa influĂȘncia Ă© vista normalmente no Brasil como erro. Mas ela Ă© uma influĂȘncia bantu muito legĂtima e vai se reproduzir em outros lugaresâ, exemplifica. SĂŁo elementos culturais importantes que, na visĂŁo do professor, nĂŁo tĂȘm a atenção devida. âAs nossas escolas nĂŁo abordam conteĂșdos linguĂsticos africanos. Essa diversidade brasileira da lĂngua foi ignorada pelas escolasâ, afirma.
*Colaborou Daniel Mello
Edição: Juliana Andrade