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Jeane Saskya Campos Tavares
Psicóloga, doutora e pós-doutora em saúde pública pelo Instituto de Saúde Coletiva da UFBA (Universidade Federal da Bahia), professora da UFRB (Universidade Federal do Recôncavo da Bahia), autora de publicações sobre saúde mental e administradora o perfil @saudementalpopnegra nas redes sociais.
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Em que momento começamos a acreditar que ter uma boa saúde mental depende exclusivamente de nossa vontade e dedicação? Que é suficiente para promoção da saúde sermos atendidos por especialistas, tomarmos medicação controlada, nos submetermos a protocolos e tecnologias "avançadas"? Quando começamos a pensar que existe algo como "mente" dissociada do "corpo" e do mundo externo a este corpo? Quando passamos a considerar que processos psicológicos acontecem num vácuo de relações sociais e historicidade?
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Para responder a cada uma dessas questões podemos citar épocas distintas, mas o importante aqui é sabermos que essas ideias são recentes e encontraram sua representação máxima nos séculos 19 e 20. Fazem parte da construção de um mundo pós-colonial e neoliberal que se organiza e se concentra em indivÃduos e não na coletividade, que pensa a vida em centros urbanos baseada na produtividade, na competição e no mérito pessoal, na capacidade de consumo como potência de vida, que estimula a alta velocidade das respostas à hiperestimulação diária, que aposta na fragilidade dos vÃnculos afetivos, na impossibilidade do descanso e do lazer, e no descarte daqueles que não correspondem ao ideal de pessoa saudável ou, para populações marginalizadas, ao ideal de seres humanos.
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De modo geral, naturalizamos a associação entre saúde mental e o que se convencionou a chamar de "alta performance" neste contexto. Uma condição diretamente relacionada com a capacidade de produzir e acumular determinados bens, de se relacionar com a vida de forma rÃgida, segundo o padrão do socialmente desejável do homem moderno: sexo masculino, adulto, jovem, branco, heterocisnormativo, sem deficiências, burguês (ou de classe alta, se preferir), não louco, produtivo, atlético.
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PoderÃamos acrescentar outros parâmetros de desejabilidade como religião, por exemplo, mas estes são suficientes para entendermos que os diagnósticos no campo da saúde mental validados e distribuÃdos nos diferentes grupos populacionais, os tipos de cuidados ofertados, as decisões sobre quem será cuidado ou descartado, torturado e morto, relacionam-se com nossos acordos sobre ser saudável ou doente e do quão próximos estamos do padrão. Ora, se normalidade ou doença são, em grande medida, resultados da negociação ou imposição desses parâmetros, entendemos que a produção de saúde mental ou de sofrimento psÃquico não é individual, mas um processo social e polÃtico.
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A exposição continuada a ofertas de serviços e produtos que prometem resultados rápidos e inequÃvocos, fórmulas prontas, um passo a passo que depende exclusivamente de nossa capacidade de seguir instruções e de pagar pelo mais novo e-book, consulta, tratamento ou retiro, quase nos impede de perceber que é o contexto social descrito acima o grande produtor de sofrimento psÃquico na contemporaneidade. Embora abordagens éticas e tecnicamente adequadas, medicamentosas ou não, que considerem especificidades e potencialidades individuais sejam muito bem-vindas e desejáveis, estas não são suficientes para promoção da saúde da população brasileira que tem mantido alguns dos mais elevados números de casos de transtornos de ansiedade diagnosticados em todo o mundo nos últimos anos, por exemplo.
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Mesmo nos casos de comportamento suicida, que costumamos considerar como o extremo da decisão absolutamente individual, sabemos desde o final do século 19 ser um processo social. Em nossa sociedade ainda organizada a partir do racismo, os fatores que vulnerabilizam as populações negra e indÃgena para o suicÃdio tornam ainda mais explicita a produção social do sofrimento. Entre indÃgenas, destacam-se pobreza, fatores históricos e culturais relacionados à luta pela manutenção dos seus territórios, desintegração de suas famÃlias, falta de sentido de vida e futuro.
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Entre adolescentes e jovens negros citam-se ausência de sentimento de pertença, sentimento de inferioridade e incapacidade, rejeição, negligência, maus tratos, abuso, violência, solidão, isolamento social, não aceitação da identidade racial, sexual e afetiva, de gênero e de classe social. Estes são exemplos de como a saúde mental, particularmente de população vulnerabilizadas, depende mais de um contexto social justo e equânime, orientado para a coletividade, para o bem viver e do funcionamento pleno da rede pública de atenção psicossocial, que de nossa "força de vontade", de coacherismos e atendimentos ambulatoriais pontuais.
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Fonte: Folha de SP
Ilustração: Catarina Pignato