Em mais uma rodada de votações marcada por intenso acirramento, o plenário da Câmara dos Deputados aprovou, na última semana, um rol de propostas de teor punitivista.
Patrocinada pela bancada da bala em aliança com o presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), a lista de projetos gerou disputas que, mais uma vez, colocaram em lados opostos parlamentares do campo da esquerda e o segmento da extrema direita e seus aliados.
Na última quinta-feira (12), por exemplo, a Câmara aprovou a castração química de pedófilos e o aumento de três para 20 anos o tempo máximo de internação compulsória de réus com transtornos mentais, além de outros projetos.
“Acho que foi um dia que terá uma triste memória, porque nós tivemos aqui retrocessos muito profundos na política antimanicomial, na reforma psiquiátrica, por exemplo, que é muito importante para o país porque significou avanços na perspectiva de varrermos a lógica manicomial. Ela volta hoje em meio a uma pauta extremamente punitivista, e o punitivismo, o fundamentalismo punitivista, em verdade, não dá respostas aos problemas da própria sociedade. Nós vivenciamos isso hoje. Foi uma pauta extremamente danosa para o país”, critica Erika Kokay (PT-DF).
Propostas na Câmara
A lista de propostas de interesse da bancada da bala que foram votadas inclui, por exemplo, a aprovação de tramitação de urgência para o Projeto de Lei (PL) 2530/15, que converte em hediondos os crimes de homicídio ou lesão grave contra guardas municipais e agentes de trânsito, e para o PL 5352/23, que enrijece as penalidades para crime de posse ou porte de arma de fogo de uso restrito ou proibido com alto potencial destrutivo.
Também foi aprovado, no mérito, o PL 7769/17, que transforma o assassinato de idoso em crime hediondo e prevê pena de reclusão de 12 a 30 anos – atualmente, a pena por homicídio simples no país é de seis a 20 anos.
Outra medida aprovada pelos parlamentares nesta semana foi uma alteração no Estatuto do Desarmamento (Lei nº 10.826/03) para permitir a regularização de armas de fogo ilegais, cujo prazo dado pelo estatuto se encerrou em dezembro de 2008.
A mudança está expressa no Projeto de Lei (PL) 9433/17. Parlamentares da esquerda apontaram que a lista de projetos aprovados, em sua maioria, dá vazão à consolidação de um “Estado policial”.
“Essa maratona de projetos de segurança pública tem um viés claramente punitivista. Quase todos os projetos são para aumentar as penas dentro da ótica da direita conservadora, que é simplesmente a de mais vigiar e mais punir, sobrando até para movimentos sociais, como o que se aprovou lá na CCJ, e nenhuma consideração sobre segurança pública como educação, oportunidade de cultura, de formação para o trabalho, de convivência.
Enfim, é a ótica repressiva, que é a predominante na Câmara dos Deputados. Aliás, acho, no Congresso Nacional”, resume Chico Alencar (Psol-RJ), um dos parlamentares que mais combateram o kit de medidas da bancada da bala nesta semana.
“Soluções fáceis”
Ponto de grande controvérsia nesta quinta-feira, o Projeto de Lei (PL) 3976/20, que cria um cadastro de pedófilos e permite castração química de condenados por pedofilia, é visto como um dos mais preocupantes pela deputada Talíria Petrone (Psol-RJ), para quem a extrema direita capitaliza o medo da população para obter a força política necessária à aprovação desse tipo de matéria. A parlamentar ressalta que não há “soluções fáceis” para problemas como o combate à pedofilia.
“As pessoas têm o direito de terem medo. É um sentimento legítimo, mas o medo não pode ser o produtor de política pública, senão a gente erra. Quero proteger as crianças, mas eu sei que não vou fazer isso com castração química. Mas a mãe que tem medo de ter a filha ser estuprada acha que isso resolve, quando, na verdade, é todo um sistema mais complexo, mas que tem proposta objetiva. A gente tinha que ter educação sexual nas escolas, cuidando para a prevenção [do problema], responsabilizando de forma dura o agressor, etc. É um desafio que a gente tem também de convencer as pessoas de que nem sempre a saída mais fácil é a que vai resolver o problema”, afirma.
Desafio
Assim como outros parlamentares, a psolista reconhece que o campo da esquerda ainda tem dificuldade de dialogar com a população sobre pautas de segurança pública, área temática em que os debates são, muitas vezes, midiatizados a partir do embate entre a visão punitivista e a proteção dos direitos humanos. “Concordo que esteja na hora de a gente olhar com muita prioridade pra segurança pública. A gente vive uma crise de segurança pública no Brasil”, defende.
Para a deputada, o caminho para se atingir esse horizonte exige outros tipos de medida. “Isso passa por controlar armas e munições, e não por flexibilizar o Estatuto do Desarmamento. Passa por garantir controle externo das polícias, valorizar os trabalhadores da segurança, termos um Sistema Único de Segurança Pública (Susp) que funcione, que não seja só uma lei e que funcione em diálogo com o Ministério Público. Isso passa por termos mais efetividade na elucidação de crimes graves, como homicídio – e você não faz isso sem perícia independente –, passa por termos uma legislação que consiga investigar e criminalizar as milícias”, exemplifica.
Erros de articulação
Nos bastidores, alguns deputados de esquerda ouvidos pelo Brasil de Fato apontaram erro de articulação do governo diante da agenda punitivista emplacada pela bancada da bala na Câmara. Na avaliação de alguns deles, faltou investir em uma reação mais contundente à ofensiva dos parlamentares reacionários para evitar que o grupo controlasse a pauta e os debates ao longo da semana.
Para Alencar Santana (PT-SP), um dos vice-líderes do governo, as costuras foram insuficientes para evitar o estrago, mas os erros vão além disso. Assim como Talíria Petrone, ele também vê dificuldades do segmento da esquerda em atuar nos debates da segurança pública.
“Nós debatemos aqui inúmeros projetos. Tivemos retrocessos, e até agora o Executivo não mandou uma pauta. O governo federal poderia ter proposto algo, ter sido mais proativo. E aí a gente fica na defensiva, votando essas propostas que, de fato, não garantem uma segurança pública melhor, apenas geram uma sensação boba [na população] e que efetivamente não garante os resultados que as pessoas esperam. As pessoas vão novamente ficar decepcionadas, depois aparecem novas propostas nesse sentido e que não resolvem o problema. Acho que a gente precisa assumir nossa responsabilidade e propor [algo] porque [segurança pública] isso é algo do dia a dia das pessoas”, avalia o petista.
Fonte: Brasil de Fato