Este livro destina-se a analisar as possibilidades para a Redução da Jornada de Trabalho nos dias de hoje, bem como os limites e os obstáculos que a ela se interpõem. No contexto de rápidas transformações em andamento no capitalismo, e apesar de condições formal e praticamente adversas, impõe-se construir uma agenda crítica em que se apresentem perspectivas para uma organização humana do tempo de trabalho.
Atualmente trabalhadores/as enfrentam uma forte ofensiva do capital contra as conquistas obtidas no Século XX que melhoraram suas condições de trabalho e de vida, particularmente no que se refere à regulamentação do tempo de trabalho que limitaram a forma de como o empregador pode dispor do tempo de vida dos/as assalariados/as. Os ataques são diversos e atingem as três dimensões do tempo de trabalho – extensão, distribuição e intensidade –, dado que as estratégias atuais do capital se valem de todos os recursos para se apropriarem de uma maior parcela do tempo do/a trabalhador/a, aumentar a intensidade do trabalho e tê-lo a disposição de forma discricionária em qualquer tempo e lugar.
A chamada Quarta Revolução Industrial ou era digital não se resume ao boom de inovações tecnológicas que presenciamos, mas cria espaço para que velhas demandas dos capitalistas emerjam da escuridão para assombrar novamente a classe trabalhadora e as sociedades civilizadas. As inovações e o desconhecimento que as pessoas têm dos diversos aspectos que elas envolvem possibilitam que o velho ressurja travestido de novo e de moderno e acabe por achar novos espaços por meio de mudanças nas legislações trabalhista que impactam especialmente o tempo de trabalho aumentando a extração de mais-valia, no discurso do empreendedor de sucesso, nos valores associados ao neoliberalismo e na valorização do curto prazo, que é o tempo do capital financeirizado.
Essas mudanças nos valores, nas tecnologias, na legislação, na percepção do tempo, no desmonte de direitos e das proteções sociais caracterizam uma involução civilizatória. Por sua vez, elas impactam sobremaneira o tempo de trabalho, tornando-o mais intenso, extenso e despadronizado aumentando, assim, a extração da mais-valia.
Nesse processo, aproveitando a nevoa provocada pelo desconhecido, os capitalistas buscam apropriar-se do tempo livre da classe trabalhadora, conquistado a partir de muitas lutas. O que aparece como novo no Século XXI, nas relações de trabalho, já tinha sido condenado como ignóbil no século XX: relações de emprego sem limitação de jornadas de trabalho, relações de emprego sem vínculos reconhecidos e disponibilidade do/a trabalhador/a a qualquer hora do dia e em qualquer dia da semana como o teletrabalho, o trabalho em empresas-plataformas, o trabalho intermitente e o autônomo exclusivo.
Poderíamos citar muitos outros exemplos de trabalho que mexem no tempo laboral possibilitando ao capital se apropriar do tempo livre da classe trabalhadora e que, além de criar condições precárias para estes, interferem de forma perversa na construção de uma sociedade mais humana onde o/a trabalhador/a possa planejar o seu tempo livre com a família, com os amigos e para si, como no trabalho em tempo parcial, trabalho por tempo determinado e temporário.
Diante dessas transformações, neste livro reunimos um número significativo de estudiosos/as do trabalho – de diferentes formações, abordagens e instituições, mas tendo em comum a excelência dos seus estudos – para refletir e expor propostas a respeito do papel, da viabilidade e da importância da regulação da jornada de trabalho e, particularmente, da Redução da Jornada de Trabalho. A proposta principal deste livro recebeu apoio da Rede de Estudos e Monitoramento da Reforma Trabalhista (REMIR) e da Associação Brasileira de Estudos do Trabalho (ABET), das nove principais Centrais Sindicais do país e de Leonardo Boff.
O Apoio da ABET veio por meio da aprovação, em 10 de setembro de 2021, da Moção de Alerta pela necessidade da Redução da Jornada de Trabalho, nos termos que seguem:
[...] os sócios da Associação Brasileira de Estudos do Trabalho (ABET), reunidos em Assembleia Geral, examinaram, votaram e aprovaram Moção de Alerta para a necessidade de discutir e implantar políticas que reduzam o tempo de trabalho na perspectiva de construir uma sociedade de maior inclusão social na qual as pessoas possam viver todas as dimensões da vida, para além do trabalho.
Assim, busca-se impulsionar as forças trabalhistas, sociais e políticas a colocar em pauta essa bandeira, pois ela é fundamental para resolver os problemas do trabalho hoje e abrir novos horizontes para a sociedade brasileira.
O apoio das 9 maiores Centrais Sindicais do Brasil se manifesta através da elaboração de um dos Prefácios deste livro, redigido e assinado por elas, e de que destacamos o trecho:
No Brasil, a última vez que conseguimos uma redução geral da jornada de trabalho foi na Constituição Federal de 1988, de 48 para 44 horas semanais. Essa conquista foi viabilizada no contexto político da Assembleia Nacional Constituinte, que marcava o fim da ditadura e reação a mais de duas décadas de perseguição e amordaçamento do sindicalismo. Foi favorecida pelas conquistas em muitas negociações coletivas que reduziram, em diversas categorias e empresas, a jornada de trabalho nos anos anteriores à Constituinte.
Enfim, Leonardo Boff, intelectual, filósofo e teólogo de inquestionável qualificação e de grande penetração internacional, escreve no outro Prefácio, intitulado “Palavras Introdutórias”, do livro sobre a necessidade de retomar a luta:
Esse conjunto de estudos sobre a luta pela redução da jornada de trabalho deixa claro o propósito buscado de humanizar a vida, de combinar de forma minimamente satisfatória a necessidade de trabalhar com uma outra forma de dispor do tempo para a vida, a convivência, o lazer e a cultura.
A ofensiva pela apropriação do tempo da classe trabalhadora vem recrudescendo no Brasil e no mundo desde a década de 1990. Por um lado, mediante as mudanças nas legislações trabalhistas nacionais, que teve seu ápice no Brasil na contrarreforma de 2017 realizada por Michel Temer e continuada por Jair Bolsonaro nos anos posteriores. Por outro lado, pelo processo mundial de introdução de novos sistemas de organização do trabalho em que cada nação tem seu ritmo, mas que invariavelmente resultam, nos países com direitos consolidados historicamente, em alongamento, intensificação e despadronização do tempo de trabalho.
Prevaleceu uma lógica de desconstrução de direitos e das proteções sociais, em que progressivamente a maioria dos/as trabalhadores/ as foi submetida a uma situação de maior vulnerabilidade. Contexto no qual combinou com um enfraquecimento sindical, em que a redução de jornada de trabalho, apesar dos ganhos de produtividades, praticamente ficou fora da agenda política e social na maioria dos países.
No entanto, diante do fracasso das políticas neoliberais, das políticas econômicas ortodoxas, da globalização financeira e das organizações do trabalho feitas discricionariamente em favor dos interesses do capital em entregar o que haviam prometido de desenvolvimento econômico – geração de postos de trabalho e aumento do bem estar – observa-se a emergência no horizonte de movimentos e experimentos que recolocam a questão da Redução da Jornada de Trabalho como uma das ações que podem contribuir para enfrentar o crescente mal-estar criado pela crise atual e melhorar a qualidade de vida das pessoas e repartir melhor os empregos existentes.
Neste sentido, algumas experiências começam a chamar atenção, tais como na Finlândia (que está experimentando uma jornada de 4 dias por semana e há uma proposta da atual primeira-ministra de instituir no país uma jornada de 6 horas diárias); experimentos, ainda que localizados, de Redução da Jornada de Trabalho estão em curso na Bélgica, na Escócia, na Islândia, na Espanha, no Japão, nos Emirados Árabes, entre outros. Na Coréia do Sul, ainda que a jornada permaneça longa, houve uma redução de 6,3 horas por mês a partir de 2019.
Na mesma perspectiva, a agenda da redução da jornada de trabalho ganhou visibilidade com a posição do IG Metal da Alemanha a favor da Jornada de Trabalho de 32 horas; o movimento “4dayworkweek” que iniciou na Nova Zelândia e rapidamente teve adesão de empresas nos EUA, Grã-Bretanha, Irlanda e logo depois em muitos outros países, inclusive no Brasil; na Grã-Bretanha em 2019 o líder do Partido Trabalhista se posicionou favorável a semana de 4 dias sem perdas de salários e, como último destaque, em outubro de 2020, o Comitê Executivo da Confederação Europeia de Sindicatos (CES) sugeriu uma agenda coordenada de negociações para a redução da semana de trabalho sem redução dos salários e medidas para o controle do tempo de trabalho, qualidade de vida no trabalho e garantia de renda em caso de doença.
Além disso, há sinais de que os níveis de precariedade do trabalho parecem se tornar inaceitáveis, como ocorreu com a revogação de parte da reforma trabalhista de 2012 na Espanha, em 2022, na perspectiva de fortalecer as negociações coletivas e estimular contratos por prazo indeterminado. O mesmo pode ser observado por movimentos de negação das pessoas trabalharem na precariedade, tais como o Movimento Antitrabalho que ocorre em muitos lugares, mas que ganhou maior visibilidade nos EUA; a retomada da sindicalização e surgimento de novos sindicatos também com destaque nos EUA. E ainda, há uma tendência de regulamentação do trabalho por meio de plataformas digitais em diversos países. Ou seja, estão em curso sinais de reação ou contraposição ao período em que praticamente somente permaneciam as políticas de 5exibilização das relações de trabalho.
No caso brasileiro, estamos na contramão desta tendência, pois o atual governo continua apostando na desconstrução de direitos com a sua proposta de criar a “carteira verde amarela”. O desafio atual é alterar a lógica da atual tendência e recolocar a necessidade de a redução da jornada ser uma agenda chave para melhorar a qualidade de vida de quem precisa trabalhar para sobreviver.
Como, a classe trabalhadora, pode dar continuidade a luta histórica que trouxe a extensão do tempo de trabalho ao patamar das 40 horas semanais e recolocar na pauta política a Redução da Jornada de Trabalho sem redução de salário? Os sindicatos, as associações, as representações de trabalhadores/as e os movimentos sociais esperam que este livro, que se intitula “O Futuro é a Redução da Jornada de Trabalho”, possa trazer subsídios teóricos e práticos que contribuam para fundamentar a retomada da Campanha Nacional pela Redução da Jornada de Trabalho sem redução de salários. É necessário reconstituir a noção de jornada e de Redução da Jornada de Trabalho como promotora de qualidade de vida. Para isto, a pretensão do presente livro é abrir espaço para as discussões teóricas a respeito do trabalho realizado no domicílio, o que implica a qualificação da noção de gênero e como distribuir melhor o trabalho produtivo e reprodutivo.
Vê-se ainda como necessário reconstituir as condições saudáveis do trabalho que foram destruídas com recentes alterações do processo de trabalho sem jornadas fixas, com trabalho completamente inseguro e intenso, muitas vezes realizado a distância. A crise da pandemia Covid-19, aliada à crise econômica que devasta o Brasil, exacerbaram a precarização do trabalho com efeitos ainda não diagnosticados para a saúde e a vida de quem trabalha.
Estruturalmente, também não se pode deixar de mencionar a preservação do meio ambiente como geradora potencial de empregos e suporte para a redução da jornada.
O livro se propõe a fazer essas discussões e estimular a reflexão de muitas outras como a do futuro do trabalho e do não trabalho. Assim, esperamos com essa obra dar a nossa singela contribuição na luta por um mundo melhor, iniciando por um mundo do trabalho igualitário, seguro e emancipador.